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Artigos - 17/02/2023

Coisa julgada: análise do julgamento do RE 949.297 e do RE 955.227 (Temas 881 e 885 de repercussão geral)

 

Já não é mais novidade que, no último dia 8 de fevereiro, o STF concluiu o julgamento do RE 949.297 e do RE 955.227 (Temas 881 e 885 de repercussão geral), tendo fixado a seguinte tese:

 

“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.

 

Passada uma semana desse julgamento, período no qual já foi possível medir sua repercussão inicial na comunidade jurídica, elencamos algumas observações objetivas na tentativa de compreender os seus contornos.

 

1. Primeiro, a tese firmada deixa claro que a sua aplicação está limitada às “relações jurídicas tributárias de trato sucessivo”. Ou seja, àqueles tributos cuja incidência se renova ao longo do tempo, pois os fatos geradores costumam ser regularmente praticados pelos contribuintes, como o IRPJ, CSLL, IPI, PIS, COFINS, contribuições previdenciárias, dentre outros (é natural que, ao longo do tempo e enquanto estiverem em funcionamento, as empresas obtenham, continuamente, receita, aufiram lucro e possuam folha de salários, sujeitando-se sucessiva e periodicamente àqueles tributos). Já não é o caso, por exemplo, do ITBI e do ITCMD, que incidem sobre um fato instantâneo que se exaure no passado.

 

2. Segundo, não é toda e qualquer decisão transitada em julgado, referente aos referidos tributos de trato continuado, que perdem sua eficácia em razão desta tese firmada pelo STF. Esta tese se aplica a uma específica situação, qual seja: aplica-se ao contribuinte que, cumulativamente, (i) possua uma decisão transitada em julgado que impacte sobre o recolhimento de um determinado tributo de trato continuado (ou seja, cujo fato gerador se repete ao longo do tempo); e (ii) o STF decida em sentido contrário a esta decisão individual, em uma ação direta ou em repercussão geral, o que implicará na automática interrupção de sua eficácia.

 

Ou seja, neste cenário, se o contribuinte não estava recolhendo determinado tributo (ou estava recolhendo a menor, pela aplicação de uma alíquota menor ou um benefício fiscal, por exemplo), terá que voltar a recolhê-lo sobre os fatos geradores que ocorrerem após a referida decisão do STF proferida em sede de ação direta ou repercussão geral, observado ainda o princípio da anterioridade (como se fosse, portanto, uma nova lei). Ou seja, o impacto será apenas sobre fatos geradores futuros, ocorridos após a decisão do STF que firme entendimento em sentido contrário à decisão individual que o contribuinte havia obtido e estava aplicando.

 

Ao nosso juízo, após a decisão do STF, deveria ser exigido ainda que a PGFN e a RFB publicassem ato disciplinando a aplicação do precedente judicial, tal como procede com relação às hipóteses em que deixará de cobrar determinado tributo ou de apresentar recurso nas ações em curso. Apenas após este ato das autoridades competentes deveria ter início a interrupção dos efeitos de uma decisão individual transitada em julgado, observado o princípio da anterioridade. O STF, contudo, não previu esta exigência, razão pela qual trabalhamos com o seguinte exemplo prático para facilitar a sua compreensão.

 

Imagine uma empresa que possui uma decisão transitada em julgado que autoriza o recolhimento do PIS e da COFINS à uma alíquota reduzida, desde 2018. Se, em 31 de julho de 2023, o STF decide, em repercussão geral, em sentido contrário a esta alíquota reduzida, estabelecendo uma alíquota maior, após 90 dias desta decisão do STF (em razão da noventena) o contribuinte terá que deixar de aplicar a alíquota reduzida sobre as receitas que passar a auferir a partir de 1º de novembro de 2023 (arredondamos a contagem dos 90 dias para facilitar a compreensão). Fosse um tributo sujeito à anterioridade anual, por exemplo, o aumento da alíquota colheria os fatos geradores ocorridos a partir de janeiro de 2024.

 

3. Terceiro, está claro que, ao menos imediatamente, o maior impacto da tese firmada pelo STF decorre da ausência de modulação dos seus efeitos. É dizer, ao contrário do que os contribuintes postularam, o STF não limitou temporalmente a referida perda de eficácia das decisões individuais ao julgamento ocorrido no último dia 8 de fevereiro.

 

Para revelar as consequências práticas desta ausência de modulação, comparamos alguns cenários, a partir da seguinte situação fática: (i) 09/2010 – trânsito em julgado de decisão individual reconhecendo a não incidência de IPI sobre a revenda de produtos importados (desde então o contribuinte cessou o recolhimento desse tributo); (ii) 09/2020 – publicação da ata de julgamento em que o STF decidiu, em repercussão geral, que incide o IPI na revenda de produtos importados; (iii) 02/2023 – julgamento do STF que firmou a tese no sentido de que a prolação da decisão do item “ii” interrompe automaticamente os efeitos da decisão individual do “item i”.

 

Neste cenário, especificamente com relação à modulação dos efeitos, tem-se o seguinte:

 

3.1. O que foi postulado pelos contribuintes? Que o STF modulasse os efeitos desta decisão para que, ao menos, o IPI pudesse ser exigido somente sobre os fatos geradores que ocorressem após este julgamento, realizado no último dia 8 de fevereiro deste ano.

 

3.2. O que o STF decidiu ao não modular os efeitos de sua decisão? Que o IPI poderá ser exigido sobre os fatos geradores ocorridos a partir da repercussão geral que reconheceu a constitucionalidade desse imposto. Ou seja, a partir de 09/2020, observado o princípio da anterioridade;

 

3.3. E se o STF tivesse afirmado a constitucionalidade do IPI, em repercussão geral, em 09/2013 (e não em 09/2020), qual seria o cenário? Neste caso, a RFB poderia exigir o IPI sobre os fatos geradores ocorridos desde 09/2013, observado, contudo, além do princípio da anterioridade, o prazo de decadencial de 5 anos, contados da data da ocorrência do fato gerador ou do primeiro dia do exercício seguinte. Ou seja, se a RFB já não tiver realizado o lançamento do IPI incidente sobre os fatos geradores ocorridos há mais de 5 anos, somente poderá exigir este imposto de 02/2018 em diante (recuamos 5 anos sem entrar nas especificidades da contagem do prazo decadencial, para facilitar a compreensão).

 

4. Quarto, relativamente à aplicação do prazo decadencial tal como no exemplo do “item 3.3”, não houve uma específica definição no julgamento realizado pelo STF, o que poderá ser feito em sede de embargos de declaração. Todavia, entendemos que não há como escapar da aplicação das regras ordinárias de decadência para a realização do lançamento, tanto é que a Receita Federal do Brasil em muitos casos formalizou as exigências mesmo na existência de decisão judicial individual transitado em julgado, pois já se sustentava que estas decisões deixavam de irradiar os seus efeitos na presente situação (Parecer PGFN/CRJ/nº 492/2011).

 

O mesmo se aplica, ao nosso juízo, aos juros e multa, que são devidos por imposição legal, salvo se, também em sede de embargos de declaração, o STF analisar este específico tema e afastar a sua incidência.

 

5. Quinto, considerando este cenário, entendemos que os contribuintes devem, em um primeiro momento, avaliar se possuem casos que se enquadram na situação acima descrita. Algumas matérias que potencialmente podem se enquadrar tem sido mapeadas, além daquela que era o pano de fundo do julgamento realizado pelo STF (recolhimento da CSLL), quais sejam: IPI na revenda de produtos importados; contribuição previdenciária sobre o terço de férias; ISS na atividade de franchising; crédito de IPI relativo a insumo isento, não tributado ou com alíquota zero; reestabelecimento do PIS e COFINS sobre as receitas financeiras realizado pelo Decreto 8.426/2015; e dedução da CSLL de sua base de cálculo e do IRPJ. A análise, contudo, deve ser feita individualmente, traçando uma estratégia de atuação, que pode envolver a viabilidade de denúncia espontânea, eventual transação, dentre outras medidas eventualmente cabíveis.

 

6. Sexto, ainda na esteira desta análise da situação individual de cada contribuinte, um tema que deve ser levado em consideração é a hipótese em que a União tenha promovido uma ação rescisória cuja liminar não tenha sido deferida ou que ainda tenha sido julgada improcedente. Ao nosso juízo esta circunstância particular, assim como outras que podem ser identificadas no exame de cada caso concreto, pode ser um fato preponderante para afastar a aplicação do precedente do STF, do dia 8 de fevereiro, para exigências pretéritas, pois a justa expectativa pela manutenção da decisão individual assume contornos distintos.

 

7. Sétimo, outro tema específico que tem sido levantado é quanto ao impacto desta decisão sobre as ações que tratam da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS. O impacto que está sendo cogitado decorre de uma específica situação: ações ajuizadas a partir do dia 16/3/2017, cuja decisão transitada em julgado reconheceu o direito à compensação ou restituição dos valores recolhidos a maior antes da aludida data. E isso porque, nesta específica hipótese, poderá ser assinalado que a decisão individual transitada em julgada afronta a modulação dos efeitos realizada pelo STF, nos autos dos embargos de declaração opostos no RE 574.706.

 

Esta hipótese, contudo, guarda peculiaridades que merecem uma apreciação individualizada, pois encerra uma divergência na aplicação da modulação dos efeitos, que repercute sobre a compensação ou restituição de tributos recolhidos sobre fatos geradores pretéritos. Parece-nos, portanto, questionável a interrupção automática dos efeitos da decisão individual transitada em julgado, o que teria impacto sobre as compensações já realizadas e aquelas ainda por realizar com os créditos decorrentes dessa decisão.

 

8. Oitavo, este julgamento do STF impõe que se permaneça em alerta para futuras decisões proferidas em sede de ação direta ou de repercussão geral que eventualmente afrontem decisões individuais transitadas em julgado obtidas por cada contribuinte. É possível que este cenário seja cada vez mais difícil de ocorrer, em razão da velocidade em que os temas têm sido submetidos ao STF, muitas vezes acarretando o sobrestamento dos processos em trâmite nos Tribunais. Mas a atenção, induvidosamente, é necessária.

 

Por fim, um especial alerta deve ser feito com relação aos temas julgados pelo STJ em sede de recurso repetitivo, especialmente nos casos em que o STF decida se tratar de matéria infraconstitucional. Não há dúvida de que o precedente do STF não prevê a automática interrupção da eficácia das decisões individuais que não estejam em consonância com ulterior julgamento realizado, pelo STJ, em sede de recurso repetitivo e nas hipóteses cuja matéria é infraconstitucional, porém é possível que este tema venha à tona e os contribuintes devem estar preparados para enfrentá-lo sem que sejam surpreendidos.

 

A equipe tributária do Zockun & Fleury Advogados está à disposição para mais esclarecimentos.