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Artigos - 03/10/2025

Reforma Tributária e Saneamento Básico: entre a promessa de modernização e o risco de retrocesso social

 

A Reforma Tributária, que institui um novo modelo de tributação sobre o consumo, tem como principais objetivos a simplificação do sistema e a neutralidade na carga de tributos. Para tanto, promove a substituição de cinco tributos por três: PIS e COFINS são unificados na Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS); ICMS e ISS convergem para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS); o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) tem sua alíquota reduzida a zero e há a criação do Imposto Seletivo (IS), cuja cobrança será restrita a bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. 

 

Importante esclarecer que, em especial, o CBS e o IBS compõem o chamado “IVA Dual”, modelo no qual o imposto aplicado sobre o valor agregado nas operações com bens e serviços é repartido em duas esferas: a federal (CBS) e a estadual/municipal (IBS). Essa divisão permite que cada esfera de governo administre sua parte do imposto de forma coordenada, evitando que o mesmo produto ou serviço seja tributado duas vezes e garantindo maior transparência para contribuintes e empresas.

 

Apesar da intenção declarada de neutralidade, consagrada no art. 156-A, §1º, da Emenda Constitucional nº 132/2023 — diploma que instituiu a Reforma Tributária —, diversos setores experimentarão significativo aumento da carga tributária. Um dos exemplos mais preocupantes é o do saneamento básico, que atualmente está sujeito apenas ao PIS e à COFINS, mas passará a ser onerado por uma alíquota mínima estimada em 26,5% no regime do IVA Dual. Esse acréscimo resulta da ausência de reconhecimento do saneamento como serviço essencial à saúde, circunstância que o exclui das hipóteses de alíquota reduzida e de tratamento favorecido.

 

Surge, então, uma indagação legítima: por que o legislador não equiparou o saneamento básico aos serviços de saúde? Afinal, a prestação de serviços de abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgoto, bem como a destinação adequada de resíduos sólidos e drenagem das águas pluviais está indissociavelmente vinculada à promoção da saúde pública, à qualidade de vida e à própria dignidade humana — esta última, inclusive, expressamente consagrada como direito fundamental pela Constituição Federal de 1988.

 

Ainda que a Reforma Tributária tenha previsto, no art. 128 da LC nº 214/2025, a possibilidade de redução de 60% das alíquotas do IBS e da CBS para determinadas atividades, a fruição desse benefício está condicionada à inclusão dos serviços em projetos de reabilitação urbana ou de infraestrutura, os quais devem ser aprovados por lei ordinária federal e atender aos critérios fixados nos artigos 158 e 162, IV, “a”, da mesma lei, inclusive com a aprovação da Comissão Tripartite, que será o órgão responsável por coordenar a aplicação uniforme do novo sistema tributário e por dirimir conflitos federativos. A implementação dessa condição é morosa e pode, na prática, inviabilizar a redução das alíquotas de IBS e CBS.

 

Desse modo, o aumento da carga tributária incidente sobre a prestação dos serviços de saneamento básico pode ser um obstáculo ao cumprimento do prazo de universalização estabelecido pelo Marco Legal do Saneamento, previsto na Lei Federal nº 11.445/2007 e posteriormente alterado pela Lei Federal nº 14.026/2020.

 

Isto porque as empresas que celebraram contratos com a Administração Pública, direta ou indireta, para a prestação dos serviços de saneamento básico devem reavaliar os encargos econômico-financeiros que assumirão com a entrada em vigor do “IVA Dual”, que elevará a carga tributária incidente sobre as operações desenvolvidas. De outro lado, o aumento da carga tributária acabará impondo à Administração Pública o dever de promover o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, assegurando a manutenção da equivalência entre encargos e vantagens originalmente estabelecidos. Sucede que o ônus econômico e financeiro decorrente desse reequilíbrio pode não ser absorvido pelo Poder Público, em razão das restrições orçamentárias vigentes ou opções político-legislativas, caso em que esse ônus poderá, inclusive, ser transferido ao usuário final por meio da elevação do valor das tarifas cobradas.

 

Parece-nos que os usuários do serviço terão capacidade contributiva limitada para absorver integralmente o aumento da carga tributária. Essa circunstância impõe um novo desafio regulatório, consistente na formulação de soluções que viabilizem, de forma equilibrada, a manutenção da saúde financeira das empresas concessionárias, o respeito à restrita capacidade econômica dos usuários diante do novo ônus decorrente da aplicação do “IVA Dual”, a limitada margem do Poder Público para assumir novos encargos financeiros e, ainda, o cumprimento das metas de universalização previstas no Marco Legal do Saneamento.

 

Embora tal realidade não transpareça quando da leitura da PEC da Reforma Tributária, a essencialidade do saneamento é inquestionável, podendo ser evidenciada por episódios recentes. No final do ano de 2024, a Baixada Santista enfrentou um surto de virose que acometeu milhares de pessoas. O aumento populacional durante as festividades de fim de ano sobrecarregou os sistemas de esgotamento, cujos emissários submarinos não conseguiram operar adequadamente, resultando na contaminação das águas marítimas. Em outras palavras, a infraestrutura de saneamento mostrou-se insuficiente diante da demanda sazonal.

 

Outro exemplo emblemático ocorreu no Rio Grande do Sul, também no ano passado, quando o estado enfrentou a maior tragédia climática de sua história, provocada por enchentes. A calamidade poderia ter sido mitigada com sistemas eficazes de drenagem urbana e manejo de águas pluviais — ambos componentes do saneamento básico.

 

A tributação não pode ser instrumento de retrocesso social, sobretudo em áreas tão sensíveis quanto o saneamento básico. Eis os novos desafios no setor!

 

Natália D. Mendes